Artigo científico


CONTEXTUALIZANDO, HISTORICAMENTE, A VIOLÊNCIA DOMÉSTICA E DESMISTIFICANDO A NOÇÃO DE QUE O FEMINICÍDIO É UM PROBLEMA PRIVADO

Karla Waleska de Sousa Silva (graduanda em Direito)

Káren Stephanny de Sousa Silva (graduanda em Sociologia)




Resumo: O presente artigo, tem como objetivo apresentar o problema da   violência doméstica como causa do surgimento dos movimentos feministas em todo o mundo bem como causa da criação de um sistema especial de proteção dos direitos das mulheres. O presente trabalho visa, sobretudo, evidenciar e contextualizar historicamente a violência contra a mulher, apresentando como foi se sedimentado o que hoje se conhece por direitos femininos. Aponta as origens das lutas, onde, quando e porque se iniciaram os movimentos feministas, contra o que lutavam as mulheres, e o que pretendiam alcançar. Além disso, este artigo, desmistifica a noção de que o feminicídio é um problema privado. Mediante dados e estatísticas fica evidente que o problema é social e cultural daí a importância de analisar o tema com base na legislação brasileira, visto que a luta continua, mas com um único objetivo, qual seja, a reafirmação do direito à vida, direito esse que milhares de mulheres, infelizmente, já não o possuem. Além disso, este trabalho denuncia que o feminicídio não é algo imprevisível, e que por esta razão merece devida atenção por parte do Estado e das vítimas.



Palavras-chave: Violência Doméstica – Feminicídio.







1. CONSIDERAÇÕES INICIAIS

Durante séculos, a superioridade masculina foi algo inquestionável, até mesmo as mulheres tinham "certeza" que eram inferiores, certeza essa que ‘’justificava’’ a permanente subordinação de seus corpos aos homens, ou seja, o preconceito  era algo nítido e aceitável. Porém, isso sacrificava não apenas a mulher enquanto sexo feminino, mas enquanto ser humano, uma vez que os homens as tratavam como coisas, objetos, ou, como uma de suas propriedades. Infelizmente, todas as práticas de subordinação, desrespeito, humilhação e obediência eram regras culturalmente aprendidas.
Somente no século XVIII, iniciou-se o movimento feminista que tinha como objetivo a luta por simples direitos. Isso significa que somente no século das luzes as mulheres começaram a perceber a relevância do seu papel na sociedade e, consequentemente, a luta para garantir o direito de serem vistas como seres humanos, não mais como objeto de posse ou meros corpos subordinados à força da cultura machista cruel e desumana, que fazia com que todas as práticas de humilhação fossem consideradas normais.
Tudo isso, justifica a demora do surgimento da palavra feminicídio, sendo difundida na década de 1970 pela socióloga sul-africana Diana E. H. Russell. Dentre tantos direitos humanos reconhecidos legalmente em quase todo o mundo, a liberdade é um dos mais preciosos, visto que remete a igualdade dos seres humanos pois se todos são iguais logo todos devem ser livres. No entanto, naquela época somente o homem (sexo masculino) nascia livre, a mulher, por sua vez, teve que lutar para alcançar o seu espaço, ou seja, a liberdade.
Logo no início das ‘’ revoltas feministas’’ os principais interesses eram o ingresso no mercado de trabalho (para o alcance da autonomia e independência financeira); e o acesso à educação. Inclusive, os Estados Unidos da América foi o país pioneiro em garantir a entrada das mulheres na universidade, no ano 1837.
Vale ressaltar, que foi nos séculos XVIII e XIX que as mulheres deflagraram a luta contra a violência que tinha como autores seus maridos, companheiros, pais, irmãos e até filhos. Porém, o entrave não era tão-somente contra seus familiares, mas contra a sociedade culturalmente patriarcal e machista, ou seja, preconceituosa.

Por centenas de anos, as mulheres foram vítimas de violência, inclusive, física que por se repetir inúmeras vezes acabava deixando marcas não só exteriores mas também interiores (psicológicas) as quais resultaram num sentimento de revolta, que serviu de impulso para a criação dos movimentos sociais em defesa da reafirmação do direito de liberdade das mulheres em todo o mundo. A medida que os movimentos se expandiam, o Poder Legislativo internacional via – se coagido a dar respostas ao clamor feminino. Desde então, iniciaram-se os trabalhos de edição de leis, tratados e convenções a fim de darem suporte e proteção às vítimas da violência, como também em prol da prevenção de homicídios femininos.
É válido ressaltar, que. as primeiras reivindicações ocorreram no século XVIII inspiradas na Revolução Francesa e no Iluminismo, mas somente no século seguinte houve a primeira Convenção dos Direitos da Mulher nos EUA, mais precisamente, na cidade de Nova York, em 1848. Mais tarde, em 1857, ocorreu um movimento grevista feminino, fortemente, reprimido pela polícia que acabou resultando nas mortes de 129 operárias causadas por um incêndio. A fim de que o caso não caísse no ''descaso'' estabeleceu-se o dia 8 de março como o Dia Internacional da Mulher, em homenagem às vítimas e como forma de dar visibilidade aos casos de violência que resultam em morte de mulheres.
Hodiernamente, a luta por direitos civis e políticos converteu-se na batalha por um único e simples direito: à vida. Por isso, foi criado um sistema especial de proteção dos direitos das mulheres, formado por diversos documentos internacionais que visam proteger as vítimas e punir os iníquos da lei, quais sejam, os violadores dos direitos humanos.
Os principais documentos são os seguintes:
- Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948)
- Convenção Interamericana Sobre a Concessão dos Direitos Civis à Mulher (1948)
- Convenção Sobre os Direitos Políticos da Mulher (1953)
- Convenção Para Eliminar Todas as Formas de Discriminação Contra a Mulher (CEDAW-1979)
- I Conferência Mundial Sobre a Mulher (Cidade do México- 1975)
- Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência Contra a Mulher (Convenção de Belém do Pará-1994)

No Brasil, os principais instrumentos de proteção à mulher, além da Constituição Federal de 1988, são a lei 11.340 de 2006 popularmente, conhecida como Lei Maria da Penha e; a lei 13.104 de 2015 também chamada Lei do Feminicídio.
No que concerne á Lei Maria da Penha, esta foi criada inspirada na Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher. Por esse motivo, é necessário apontar as formas de violência doméstica e familiar contra a mulher previstas no art. 7º daquela lei (11.340.2006), quais sejam, violências física, psicológica, sexual, patrimonial e moral. Além disso, o art. 8º do mesmo diploma afirma, que a política de neutralização da violência contra a mulher deve ser feita por meio de conjunto articulado de ações da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios bem como das ações não-governamentais.
Além das políticas de prevenção e neutralização da violência doméstica contra a mulher, a Lei Maria da penha prevê uma política de assistência ás vítimas; dispõem, ainda, sobre medidas de proteção à mulher em casos de urgência.
É imprescindível pontuar que, desde a promulgação da Lei Maria da Penha, em 2006, os direitos femininos ganharam enorme visibilidade no âmbito nacional, deixando nítido que os crimes praticados contra mulheres é um problema social e cultural que interessa ao Estado. Através da lei 11.340.2006 introduziu-se no sistema brasileiro um pacote de medidas protetivas; punitivas; de atendimento à mulher; criação de órgãos; ampliação de serviços entre outras medidas para lidar com o dilema sociocultural.
Felizmente, a Lei 11.340.2006 vem alcançando seu objetivo por meios de artifícios adequados para o enfrentando da violência contra a mulher brasileira.
Contudo, mesmo com grandes avanços do legislativo, certamente, ainda há inúmeros desafios, o principal deles é o feminicídio, daí a importância de dissertar sobre o segundo principal instrumento, existente no Brasil, de proteção à mulher qual seja, a Lei 13.104.2015 que introduziu no Código Penal brasileiro mais uma qualificadora do crime de homicídio, estabelecendo pena de 12 a 30 anos de reclusão para quem cometer homicídio contra mulheres por razões da condição de sexo feminino, esta previsão está contida no art.121 parágrafo 2º,VII do CP.
Destarte, está claro que a lei do feminicídio foi criada como forma de reprimir a pior das violências contra a mulher, tanto isso é verdade que a referida lei caracteriza o feminicídio como crime hediondo, ou seja, indiscutivelmente reprovável pela sociedade, isso por ser um crime de ódio, uma vez que a vítima é intencionalmente selecionada pelo assassino.
É notória a relação intrínseca da Lei Maria da Penha com a Lei do Feminicídio, pois aquela deu visibilidade a necessidade de se observar o problema social, que culturalmente está enraizado na sociedade brasileira, pois sabe-se que a luta é contra a desigualdade de gênero e o patriarcalismo que desumanamente assola não apenas as mulheres, mas todos aqueles que lutam contra a violência.
Importante dizer que, a luta, historicamente, travada era mais subjetiva, atualmente essa luta tem se tornado objetiva tendo como principal e quase única finalidade a reafirmação do direito de ser livre para viver pois o direito à vida é o mais valioso bem jurídico do ser humano, que tem sido violado por motivos irrelevantes e sobretudo insignificantes.

2. FEMINICÍDIO: UM PROBLEMA SOCIAL

O feminicídio é o assassinato da mulher apenas pela sua condição de ser mulher, ou seja, por questões de gênero. Diariamente, a sociedade brasileira é bombardeada pelas trágicas informações da ocorrência de feminicídio em todas as regiões do país, segundo um levantamento realizado pelo G1, a cada duas horas uma mulher é assassinada, isso significa que doze mulheres por dia foram mortas durante o ano de 2017, um crescimento de 6,5% se comparado ao ano de 2016.
O Estado notificado com o maior índice de feminicídio foi o Mato Grosso, com cerca de 4,6 mortes a cada 100 mil mulheres, a maioria dos casos ocorrem por motivos do inconformismo com a separação, e é praticado por pessoas próximas à vítima.
Nos termos do Código Penal brasileiro, no seu art. 121, parágrafo 2º-A, I, e II considera-se que há razões de condição de sexo feminino, quando o crime envolve violência doméstica e familiar, e menosprezo ou discriminação à condição de mulher.
O feminicídio ocorre tanto nas famílias mais humildes, como também nas famílias tradicionais e economicamente bem sucedidas, podendo afetar mulheres negras, como também brancas, anônimas ou figuras públicas, e se outrora o movimento feminista exigia, principalmente, igualdade no mercado de trabalho, a exigência das duas últimas décadas tem sido o direito à vida mesmo após a separação, desmistificando a visão da mulher como objeto sexual e, principalmente, como propriedade privada, pois muitos feminicidas, antes de cometerem o crime, afirmam claramente que se as mulheres não forem deles não serão de ninguém.
O grande número de denúncias de violência, humilhação, discriminação e assassinato de mulheres desenvolveu na mentalidade da população brasileira a convicção de que tais características não podem ser aceitas como normais em um relacionamento, além disso, percebe-se que o feminicídio não destrói apenas a vida da mulher, ou seja, da vítima, mas afeta uma das mais importantes instituições sociais, a família. Mediante a percepção da amplitude do problema, tendo em vista o exacerbado índice de mortes violentas de mulheres no Brasil, o feminicídio passou a ser concebido não apenas como um desafio do movimento feminista, ou individual da vítima, porém como um desafio social, que precisa de soluções urgentes para impedir que, novas donas de casa, mães de família, jovens sonhadoras transformem-se apenas em estatísticas.

3. SINAIS QUE PREDIZEM O TRÁGICO DESFECHO

É necessário esclarecer que o feminicídio não é um ato delituoso imprevisível, pelo contrário, antes do seu desfecho, inúmeros sinais, que o predizem são emitidos, mas, infelizmente, ignorados, vezes por parte da própria mulher que considera os ciúmes como sinônimo de amor, vezes por parte do Estado, e também pelos próprios serviços que deveriam proteger a vítima, os sinais também são ignorados, por parte da sociedadem que culturalmente, insiste em considerar a violência doméstica como um problema privado, ou seja, restrito ao marido e a  mulher.
A violência contra o corpo feminino ocorre de maneira gradativa, segundo Teresa Cristina dos Santos, juíza titular da 2º vara criminal de Santo André [SP], afirma que o que se vê no dia a dia é que agressão começa com a violência psicológica, com a tentativa de controle. Quando uma ordem não é obedecida, passa-se a violência moral, para xingamentos e lesões consideradas mais “leves’’ pelas pessoas, mas que já indicam um agravamento de risco.
Importante lembrar que, muitas vítimas de violência psicológica, física, sexual, patrimonial e moral, sentem-se constrangidas em assumirem estarem passando por tal situação, principalmente pela ausência de apoio de instituições sociais que permanecem essencialmente machistas, e que responsabilizam a mulher pela violência sofrida. Somente as agressões físicas mais visíveis são caracterizadas como um alto nível de risco para a vítima, risco esse, que na maior parte dos casos acaba resultando no feminicídio.
Vale ressaltar, que, somente a medida protetiva, defendida pela Lei Maria da Penha, é ineficaz para a proteção da vítima, pois tal medida serve para intimidar o agressor e não para puni-lo. No entanto, o mais indicado é que seja registrado o boletim de ocorrência a fim de tornar público a realidade social brasileira e os perigos de ser mulher em um país com um alto índice de feminicídio.

4. CONSIDERAÇÕES FINAIS

A partir da análise prestada no presente artigo resta, com enorme incômodo, afirmar que apesar dos avanços resultantes da conjugação das normas internacionais com as legislações nacionais, segundo o mapa da violência de 2015 o Brasil ocupa a 5° posição entre os países que mais matam mulheres no mundo, ficando atrás somente de El Salvador; Colômbia; Guatemala e Rússia, esse quadro denuncia a urgência de respostas eficazes do Estado e da sociedade para prevenir e coibir a violência de gênero. Nesse diapasão vale que destacar que, "apesar da evolução significativa da posição da mulher na sociedade e dos grandes avanços obtidos na legislação brasileira quanto à garantia dos seus direitos, os homicídios de mulheres continuam aumentando” (ELUF, 2002). Tais evidências são representadas pelas altas taxas de feminicídios no Brasil, as quais expressam que esse mal que subalterniza a população feminina não é um problema privado, mas social, uma vez que viola um dos fundamentos do Estado Democrático de Direito previsto no art.1°, III da Constituição Federal de 1988, qual seja, a dignidade da pessoa humana.
Para que essa triste realidade brasileira tome rumos contrários é necessário a correta aplicação das leis, e de outros mecanismos que sejam aptos a proteção das vítimas e punição dos agressores. Também é necessário a criação de políticas, não somente de governo, mas principalmente de estado, comprometidas com a sociedade, que tenham por escopo a erradicação da violência de gênero e a prevenção do feminicídio. Face a complexidade do feminicídio é preciso haver vontade política e investimentos orçamentários visto que são esses os maiores entraves no combate a violência contra a mulher no Brasil.
          Dentre tantas formas passíveis de serem utilizadas no combate a violência doméstica e ao feminicídio, é necessário que a sociedade (os amigos, a vizinhança e outras pessoas próximas à vítima) assimilem que a violência contra a mulher não é um problema privado, mas um problema sociocultural decorrente da antiga e atual sociedade machista, que por sinal precisa, urgentemente, se reeducar.



REFERÊNCIAS

vestibular.uol.com.br/resumo-das-disciplinas/atualidades/feminicidio-brasil-e-o-5-pais-em-morte-violentas-de-mulheres-no-mundo.htm
g1.globo.com/monitor-da-violencia/noticia/cresce-n-de-mulheres-vitimas-de-homicidio-no-brasil-dados-de-feminicidio-sao-subnotificados.ghtml
www.fundodireitoshumanos.org.br
DEL 2.848/1940 (DECRETO-LEI) 07/12/1940
LEI 13.104.2015
Lei 11.349.2006
ELUF, Luiza Nagib. A paixão no banco dos réus. São Paulo 2002
agenciapatriciagalvao.org.br/wp-content/uploads/2017/03/LivroFeminicidio_InvisibilidadeMata.

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